LLM’s: um novo oráculo?

O acaso ataca e faz soar a flauta

João Cabral de Melo Neto, Fábula de Anfíon

Toda época erige o seu Delfos. O nosso responde sem vapores, sem sacerdotisas: chama-se inteligência artificial. Mas os oráculos dos antigos não eram máquinas de resposta; eram ritos do enigma. O oráculo preservava o que o nosso tempo tenta eliminar: o impossível como estrutura. Enigma: ainigma, de ainissesthai, “falar por alusões”, dizer o impossível.

O nosso oráculo será capaz de suportar o enigma?

A IA ocupa o lugar do saber — acumula, calcula, prediz —, mas não o da verdade. A verdade exige corpo, falha, silêncio. A máquina produz saber sem sujeito, sem corpo. Um saber sem corpo é um saber sem verdade.

Nos oráculos gregos, o logos se deixava atravessar pelo theos. Enthousiasmós quer dizer “ter o deus em si”. Em Lacan, o entusiasmo muda de registro. Jorge Forbes o destaca. Os deuses são um nome para o que excede o sentido. Na Nota italiana, Lacan escreve: “há saber no real”. Um saber também sem sujeito — não ausência de corpo, mas funcionamento fora do sentido. O real não fala: funciona. O entusiasmo é a vibração do real no dizer. O analista não interpreta o deus: escuta o que o saber do real faz ressoar na fala.

A IA, sem corpo, só tem logos: cálculo sem eco, palavra sem paixão. O analista sustenta o seu avesso — o entusiasmo do real, a escuta do impossível que faz o discurso vacilar: e criar. François Leguil diz que Lacan reata o fio que Jaspers cortou: compreender e explicar giram em torno do impossível. O analista não fecha o processo — sustenta-o. É no ponto de desordem que o sujeito aparece, não como consciência que fala, mas como quem padece o que diz. A IA não conhece processo. Explica o que pode, ajusta o que falha, elimina o que escapa. Mas é o que escapa que a psicanálise faz de causa.

Por isso, uma análise tende ao silêncio. Caminha da palavra comunicada ao gosto da palavra, como diz Forbes. A palavra comunica; o gesto sustenta o impossível de dizer. O gesto é o ponto em que o saber, recolhido, deixa espaço para que se aponte o real — onde o corpo fala e o saber cessa. A IA, que tudo calcula, não conhece gesto: repete a palavra, multiplica o saber. O analista trabalha no intervalo, entre o dizer e o real, entre a palavra e o impossível.

Os oráculos falavam por enigmas; a psicanálise escuta o que, neles, ainda insiste. A IA, ao contrário, responde: quer apagar o silêncio que se impõe ao enigma. O enigma abre o furo por onde o real ressoa, como uma flauta tocada pelo caos. O analista trabalha nesse intervalo, onde o saber se cala e o real ainda murmura. A IA, movida pelo cálculo, nasce do mesmo vazio, mas é programada para negá-lo: é lógica e consistente, nunca completa. Quer ser inteira — simulacro da paixão inútil de quem sonha ser deus — e borra o próprio vazio que a funda.

Esse novo oráculo, que ergue e erguerá coisas belas e terríveis, será capaz de sustentar o enigma?

Anterior
Anterior

Real e repetição nos modelos de linguagem

Próximo
Próximo

Claude no divã